Convocação
de Eurípedes Barsanulfo
Amigos em Cristo, esperança em seus corações.
Um fenômeno social irreversível vem ocorrendo nas
relações: a superação dos modelos verticais de convivência.
Contrapondo os velhos referenciais de autoridade
para ditar o que fazer e como fazer, a família e a escola, a religião e a
cultura, assim como todas as organizações humanas são convocadas a repensar as
carcomidas formas de relacionamento.
Ninguém
estabelece as normas, ninguém tem certezas ou verdades definitivas. Todos em
busca de posicionamento a partir de suas necessidades mais profundas. O caminho
atual aponta para a criação de relações horizontais, a diluição dos papéis e a
formação de grupos cooperativos. Os clamores da alma retumbam no coração humano
à procura de paz, equilíbrio, saúde e sossego interior. Um extenso labirinto
apresenta-se, cujo percurso é individual, singular. É a saga da alma em
crescimento, eterna perseguidora da felicidade e das respostas para Ser em plenitude.
Cartilhas e padrões, estatutos e regras sofrem
golpes impiedosos. A nova ordem social conduz a uma decisiva derrocada na
supremacia de velhos e corroídos significados. Ressignificar... Dar sentido
novo em direção a um porvir de esperanças e completude interior.
Encontramo-nos em meio a essa turbulenta gestação de idéias, valores e
referências. A humanidade prepara-se para adotar o conceito sistêmico,
solidário. Enquanto isso, rui todos os paradigmas em verdadeira hecatombe de
convenções hegemônicas. Os velhos parâmetros não atendem às necessidades do
agora. Por outro ângulo, ainda não se formaram novos modelos de inspiração para
que o homem se guie nas suas experiências e metas. O certo e o errado variaram
totalmente seus sentidos, e ainda não se teve tempo bastante para estipular
outros conceitos.
Portanto, nutrir muita certeza sobre algo, cultivar rigidez de entendimento é
postura extremamente arriscada nessa fase de mutação. Não menos arriscado é
assumir a desafiante atitude de “inventor” de novas formas de caminhar. Esse
fenômeno social que nasce nas entranhas da alma exige siso moral,
responsabilidade individual, coragem. É algo bem diferente. Antes se tinha
alguém para ditar o caminhar, algum modelo, uma experiência em que se apoiar.
Tornava-se cômodo responsabilizar o próximo ou alguma orientação institucional
a fim de evadirmos ou esquivarmos dos efeitos nocivos de nossos atos.
Esperam-se mudanças para melhor na humanidade, todavia poucos são os que
perceberam uma realidade inquestionável: a Terra mudou rapidamente. Seus
habitantes não conseguiram ainda avaliar a profundidade de tudo que ocorreu nas
últimas três décadas. Em trinta anos, efetivaram-se séculos de mudanças.
Atordoados e aflitos, sem direção e sem rumo, a humanidade debate-se à procura
de bússolas que resgatem o sentimento de segurança.
Nesse cenário global, repete-se, no iniciar do século XXI, a mesma experiência
do Espiritismo prático no alvorecer do século XX. Naquele tempo, as bússolas
não existiam, foram criadas. Agora, somos chamados a recriá-las. A mediunidade
e seu exercício obedecem a esse ciclo inadiável e dinâmico. Os seareiros do
intercâmbio, em quaisquer patamares de conquistas, são convocados a construírem
sentidos novos na utilização das forças psíquicas e mentais, que envolvem a
relação interdimensional entre esferas de vida.
A diversidade, conquanto, a princípio, cause insegurança, é propícia à
expressão da criatividade. Criatividade que deverá sempre ser regida pelos
valores morais da sensatez, da responsabilidade e do amor.
Allan Kardec, o emissário da Era do Espírito, refere-se ao fermento da
incredulidade que ainda tomaria conta da humanidade por duas ou três
gerações[1]. Incredulidade em relação à imortalidade e comunicabilidade do ser
espiritual. Adentramos exatamente essa terceira geração, dividida em três
períodos de setenta anos, a partir da chegada do Espiritismo.
É o período da sensibilidade, da fé que supera o medo humano de existir e
progredir no bem.
Fé é a adesão espontânea da alma na busca da
Verdade.
Mediunidade
é o ventre sagrado do fervor. Através dela, ocorre a sublime gestação do
patrimônio da crença lúcida e libertadora.
Raciocínio é o dínamo da lógica e do bom senso. Quando atacado pela rigidez
emocional, converte-se em preconceito e estagnação.
Inúmeros grupos doutrinários transformaram o critério do raciocínio em medida
prática de defesa, para não serem enganados pelas bem urdidas mistificações.
Com essa postura, se não são enganados nas suas produções mediúnicas, são
ludibriados quanto ao significado abrangente das relações de amor entre as
almas, circunscrevendo a prática de intercâmbio às expressões superficiais de
conversão de desencarnados, com espaço acanhado para a manifestação livre dos
benfeitores e aprendizes da erraticidade. Vigilância excessiva é um cadeado nas
portas da sensibilidade, aprisionando os sentimentos aos severos regimes de
descrença e engessamento mental. A cautela excessiva com a fantasia e o engodo
manietaram inúmeros servidores.
E o resultado mais infeliz de tanta censura é o
enfermiço desânimo com as sagradas práticas de intercâmbio entre os mundos. O
mais grave efeito do engessamento cultural das idéias espíritas é a paralisia
da noção de imortalidade. Um plano espiritual estático e desconectado da vida
na Terra.
Jesus, o paradigma do Amor Universal, ao estabelecer pela Sua Atitude a era da
ética aplicada e sentida, assegurou em suas palavras: Não vim ab-rogar, porém,
cumprir[2]. Que definição mais precisa se pode ter de uma transição? Quando se
fala em novos significados, estamos, em verdade, referindo-nos ao ingente
desafio de viver a mensagem esquecida do amor. Transição, portanto, muito antes
que uma etapa que deflagra o novo, significa a sublime decisão de afinar-se com
o bailado cósmico do amor, o ritmo pulsante de Deus desde a origem dos tempos
infinitos.
No século XX, os espíritos procuraram os homens. Agora, os homens deverão ser
os parceiros dos espíritos. Buscar-lhes para a vivência de uma relação mais
consciente e educativa. O “telefone” tilinta daqui para lá, todavia, chega o
instante de recebermos também os “chamados” do homem, cujos interesses repousem
na transformação de si mesmo.
A bondade celeste conferiu-me novos desafios nesta casa de amor[3]. Imperioso
refletirmos sobre os destinos da mediunidade ante o clímax da transição
espiritual do planeta. Nossa missão consiste em avaliar medidas promissoras a
nosso alcance, que facilitem a consolidação dos Planos do Espírito Verdade para
a messe espírita do mundo físico no século XXI. Os primeiros cem anos do
terceiro milênio serão os alicerces da Era do Espírito.
Na condição de educadores da alma, importa-nos
reconhecer o exato valor das instituições humanas, jamais as adotando como
expressões absolutas da verdade. Tradições e valores estão em acelerado
processo de metamorfose. Estamos atravessando uma crise de referências sem
precedentes na seara. O movimento espírita está sendo sacudido por um terremoto
de diversidade. Porém, convenhamos, é nesse cenário que vai emergir a rota da
regeneração.
O Espiritismo não cria a renovação social. As necessidades do homem elegerão
seus princípios como senda indispensável. Não se deve deduzir, todavia, que seu
perfil social servirá de modelo, porque a diversidade nesse terreno será avassaladora
a tal ponto de diluir, apropriar e melhorar as características de suas práticas
e conceitos. Ante essas mutações necessárias, os discípulos aferrados a modelos
serão convidados a sofrido teste de desapego.
A ciência e a religião, a arte e a filosofia serão caminhos propulsores da
força do pensamento espírita, sobrepujando o materialismo que grassa. Nenhum
deles, no entanto, servirá de via preferencial. Por essa razão, urge
desenvolver um novo significado para a comunidade adepta da verdade consoladora
face ao predominante caráter religiosista. Religião com religiosidade. Religião
com educação. Se a religião não educar, ficará retida no dogmatismo. Se a
ciência não educar, será sovinice. Se a filosofia não educar, transformará em
cátedra de vaidade. Se a arte não educar, constituirá um palco para
exibicionismo. O momento converge todas as conquistas humanas para a
espiritualização da criatura e pelo desenvolvimento de seus valores nobres e
divinos.
Amigos e trabalhadores, nessa hora tão decisiva, os médiuns maduros revestem-se
de importância singular.
O primeiro século de mediunidade orientada pelas
luzes da doutrina, desde as reuniões realizadas nos núcleos familiares, ensejou
um nível de intercâmbio intermundos jamais deflagrado em qualquer tempo da
história da Terra. Apesar disso, somente ao libertarmo-nos do corpo,
averiguamos claramente quão rude ainda são nossos contatos com o mundo físico.
Por esse motivo natural, não será exagero afirmar que o século XX, no que tange
à mediunidade, foi o período de ensaios promissores, tendo em vista o futuro
glorioso que espera o homem psíquico do século XXI. Os médiuns mais consagrados
de nossa seara fizeram-se canais abençoados para que a linfa da Divina
Providência jorrasse sobre o mundo. Eles próprios, contudo, sabem que estamos,
indubitavelmente, na infância dos contatos entre as esferas física e
espiritual.
O século XX foi uma farta semeadura. Os grãos deram uns a trinta, outros...
Outros foram sufocados, pisoteados... Que o otimismo e a bondade não entorpeçam
nossa visão quanto às infelizes ciladas da maldade... Em meio à farta semeadura
de bênçãos nascidas do intercâmbio mediúnico, vicejou lastimável semente de
joio...
O que era apenas uma ameaça ao intercâmbio
mediúnico responsável, regido pela espontaneidade, hoje se concretiza como
autêntico cerceamento criado por padrões rígidos e institucionais nas leiras de
serviço. Tais padrões, a princípio erigidos como “estacas de segurança”,
transformaram-se em “cartilhas” por sugestões de corações bem intencionados,
porém, desprevenidos quanto ao significado da singularidade nos assuntos
metafísicos. Além disso, a existência dos “mentores culturais” de sofismas, em
ambos os planos, multiplicaram as noções inconsistentes absorvidas pela
comunidade em suas práticas e conteúdos. O resultado inevitável é o
restringimento, ainda maior, das manifestações do céu para a vida terrena.
Chega a hora de um novo chamado!
A hora que atravessamos é similar à parábola das Bodas, narrada em Mateus,
capítulo vinte e dois. Os convidados do Rei não compareceram para o evento. A
eles, foi destinado o convite, a oportunidade lhes pertencia, entretanto, por
motivos pessoais, não compareceram. O Rei, perante a ocorrência, manda seus
servos nas aldeias e campos a chamar quantos se apresentassem ao mister.
O tempo e a aquisição do conhecimento têm causado
perturbadora sensação de grandeza a muitos aprendizes das frentes de labor
mediúnico. Desse modo, afastam de si próprios os convites ininterruptos aos
novos misteres que a cada época são dirigidos à vida física, destinados a
promoverem o progresso e amadurecimento de nossas relações interdimensionais.
Não se trata de criar novidades nas laboriosas frentes de intercâmbio, e sim de
resgatar a linfa cristalina da produção mediúnica, exonerando-a dos pedregulhos
e impurezas provenientes dos “entulhos culturais” a ela infligidos. Em verdade,
propomos um retorno ao exercício mediúnico conforme as propostas do Cristo de
Deus.
Somente a poder de trincheiras produtivas,
implantadas em solo brasileiro no início do século XX, foi possível ampliar o
raio social de ação do pensamento espírita. De tudo fizeram os vales da sombra
e da morte com fins hostis a esse projeto. As tarefas socorristas
constituíram-se em “válvulas de alívio” às pressões ininterruptas e
incansáveis. Passaram-se cem anos nesse campo de lutas acirradas.
Ao penetrarmos esse terceiro período de mais setenta anos na busca da
maioridade das idéias espíritas[4], urge algumas medidas salvadoras. A
vitalidade do movimento em torno dos postulados espíritas dependerá de uma nova
ordem cultural em todos os seus setores de ação, especialmente na sementeira da
mediunidade.
A solidez da investigação fraterna requisita das equipes cristãs o gosto pela
crítica, sincero apoio ao crescimento de todos, honestidade emocional em
relação uns aos outros, tratamento responsável com todas as dúvidas. Somente
nesse clima de relacionamentos sinceros e leais, respaldados pelo desejo de
aprender e servir, a luz da misericórdia celeste brilhará, transformando a
fragilidade humana em abundante celeiro de imorredouras venturas.
Existem servidores sérios e vigilantes na seara, experimentando o açoite da
calúnia de trabalhadores incautos e orgulhosos. O tempo indica aos tais
servidores do amor a discrição a fim de não terem seus ideais esmagados pelo
peso da chocarrice alheia. A truanice não merece resposta. Compete-nos destinar
a eles, servos destemidos, um alerta para que, nesse momento, não declinem da
oportunidade de colocarem a luz onde possa ser vista por todos, no velador. São
as bússolas indicadoras para os caminhos do Cristo ante os tempos novos.
O século XXI será o tempo do sentimento, e até as esferas abissais do planeta
vivem esses momentos. Antes, dominavam pelas idéias, agora, com o avanço da
ética e da cidadania, não conseguem usurpar, com a mesma facilidade, a
inteligência humana, no entanto agridem o homem pelo coração. A inteligência
avançou, mas a emoção humana, com raras e honrosas exceções, estagia no
instinto!
É assim que atuam os hábeis manipuladores dos sentimentos perturbadores de
desmerecimento e inferioridade. Fazem esquecer as conquistas para exacerbar a
indignidade. Uma análise antropológica cuidadosa nos apontaria a intensidade
com a qual as estruturas religiosas e políticas, de todos os tempos, exploraram
a “cultura da indignidade” como instrumento de domínio. Os líderes das regiões
abismais utilizaram de semelhante expediente na gestação desse estado
deplorável das agremiações doutrinárias do Espiritismo no que tange às relações
extrafísicas.
Que esse foco não entorpeça nossa razão, por se tratar de realidade previsível,
considerando o caminhar lento, mas progressivo, da humanidade.
Incentivemos os caminhos novos aos nossos parceiros no mundo físico! Os médiuns
que melhor irão retratar as mensagens celestes são os que educarem seus
sentimentos.
As bússolas serão encontradas. É lei. O longo percurso de descoberta e
criatividade solicita a aplicação de atitudes de amor condizentes com os novos
tempos. Assinalemos algumas delas no intuito de estudar e debater as sendas da
mediunidade em tempos de transição:
▷ valorosa noção e aplicação do
espírito de equipe;
▷ desapego para experimentar;
▷ coragem para experimentar;
▷ adesão afetiva e espontânea na participação de
novas vivências;
▷ investigação nas conquistas da ciência;
▷ acendrada postura de despretensão ante as vitórias
com as novas práticas;
▷ incansável abertura mental para ouvir, alterar,
avaliar e discutir em clima de aprendizado e fraternidade;
▷ superação dos limites filosóficos doutrinários em
busca de conceitos universais aplicáveis à mediunidade.
(Palestra
proferida, no início de 2000, por Eurípedes Barsanulfo, no Hospital da
Esperança, extraída do livro Lírios de esperança, de Ermance Dufaux,
psicografado por
Wanderley S. de Oliveira, Editora Dufaux, Belo Horizonte, MG)